sexta-feira, 21 de novembro de 2008

De Maquiavel a Kafka (1)



Hoje, graças à benfazeja greve da função pública, que mobilizou todos os funcionários auxiliares e administrativos e impediu que houvesse aulas, pude estar 9 horas seguidas na escola a adiantar o trabalho atrasado. Eu e uma quantidade de professores, mais precisamente os directores de turma, cuja carga de tarefas excede largamente as duas horas semanais que estão reservadas para esta função. «Precisávamos pelo menos de 10 horas por semana», diz-me uma colega.

Nesta fase do ano escolar - pelo mero efeito de acumulação das faltas de dois meses, mas também pelo absentismo crescente dos alunos e pelo agravamento da indisciplina - a quantidade de faltas que cada DT tem que recolher do livro de ponto e registar no sistema informático é de dezenas por dia. Em consequência, os alunos atingem os limites legais de faltas e, nas últimas semanas, os DT não páram de mandar cartas ou telefonar aos pais e EE -"pelo meio mais expedito", diz a lei 3/2008 - para os fazer vir à escola tomar conhecimento da situação do seu educando. Quando eles não respondem ou não vêm, o DT deve sinalizar a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, o que acaba por ser o argumento final para os fazer vir à escola e prometerem que vão falar com os filhos e que eles não faltam mais, etc., etc.

Pobres pais. É que os filhos são indomáveis e continuam a portar-se mal: ou faltam ou levam faltas disciplinares. Chegámos então à semana em que começa a cair o prazo para os primeiros alunos que serão obrigados a fazer a Prova de Recuperação. Nos livros de ponto inseriu-se mais um anexo, onde o DT assinala a data em que o aluno excedeu o limite de faltas injustificas (3 vezes os tempos lectivos de cada disciplina) e os professores de cada disciplina têm 10 dias para marcar a data prova de recuperação desse aluno, após o que o aluno tem 10 dias para estudar a matéria a que não assistiu. Isto começa a acontecer, neste momento, nas disciplinas com menor carga horária, como História ou Educação Visual.

O pior é que, como os miúdos não vêm às aulas, não é possível avisar os EE simplesmente através da caderneta. Então o professor comunica a situação ao DT e este envia um aviso - por carta registada - ao EE. Mas isto não é um ou dois casos por turma. É um ou dois casos por dia, sucessivamente. O DT não pára de fazer papelada, registos, envios, telefonemas, contactos, etc. Estão agora a perceber por que se queixam os professores de burocracia? Era precisa uma pessoa a tempo inteiro para dar conta, digamos, de 3 turmas problemáticas.

Esta foi a parte kafkiana. Passemos agora ao maquiavelismo.

A história continua assim: o aluno foi avisado e a prova marcada. Se ele comparece e é aprovado, todas as anteriores faltas são consideradas justificadas. O contador volta a zeros. E ele aprende que pode continuar a faltar e que lhe basta fazer uma prova de vez em quando. O DT continuará a assinalar as faltas e a comunicá-las ao EE. Quando atingir de novo o limite de faltas, voltamos ao princípio da história: novas provas de recuperação. E os professores continuam a marcar, fazer, dar e avaliar provas destas aos piores alunos.

O sistema funciona na perfeição. Impede-se assim que o aluno - mesmo penalizado - saia do sistema. Todas as suas tentativas de abandono escolar sairão fracassadas. A prova de recuperação não passa afinal de uma impostura burocrática para impedir que os alunos chumbem.

Mas se o aluno reprova na prova, o Conselho de Turma deve reunir-se e decidir o que fazer com aquele caso. O CT decide então que o aluno tenha um Plano de Acompanhamento Especial e repita a prova ou que seja retido no final do ano (ou excluído no caso se já não se encontrar fora da idade da escolaridade obrigatória). Digamos que o professor de cada disciplina pondera a situação e considera que mais vale passar o aluno do que obrigar uma dúzia de colegas a reunir-se fora das horas de trabalho para decidir do promissor futuro destes jovens.

Uma professora disse-me ontem: «Aviso-te que só faço esta primeira prova. E vou deixar de marcar faltas de atraso». Assim, os alunos começarão a chegar cada vez mais atrasados. Outros professores evitarão as faltas disciplinares. Pois a única hipótese que têm os professores - para escapar ao vício destes procedimentos - é evitar que os alunos tenham demasiadas faltas, ou protelar a inevitabilidade desse momento e depois dar-lhes uma prova "para passar". Na melhor das hipóteses, o aluno falta à prova e automaticamente ficará retido no final do ano.

Entretanto gasta-se tempo a tratar destes cancros, em vez de nos dedicarmos aos que querem aprender. A indisciplina na aula alastra com a impunidade das sanções (a começar pela marcação de falta) e ensinar torna-se muito difícil, senão impossível.

Ontem - na aula de Formação Cívica, onde se tratavam os "direitos dos alunos" - avisei a minha turma de 7º ano: «Digam aos vossos pais que vocês não estão a ter direito a uma educação de qualidade, e digam-lhes que se reúnam para discutirem por que é que a indisciplina de uns impede o direito à educação de outros». Acho que perceberam mais ou menos.

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